"... um esboço, ainda que mal-ajeitado, da envolvência que o viu crescer"
Veiga

Nenhum dos quatro irmãos subiu a encosta da vida de elevador. Pela escada, só o mais novo, que já teve o crescimento acompanhado por uma economia familiar um pouco menos diminuída. Os outros três subiram pela corda, à força de pulso, que é como quem diz à força da vontade de aço que se impuseram em contracorrente à contrariedade dos parcos recursos da família. A aliviar um pouco a cansativa rotina do atendimento dos fregueses ao balcão da taberna, donde lhes vinha o pão, qualquer dos quatro acudia com a sua ajuda quando possível, limpando do velho mármore do balcão o vinho derramado dos copos servidos, estendendo o pratinho com o petisco que enchera o olho ao freguês e lhe havia de compor o estômago acompanhando a pingoleta, ou lavando ao jorro da torneira os utensílios dos serviços já prestados. Era uma rotina pesada essa que atravessava os dias sempre repetidos no calendário semanal onde não cabia o descanso dos domingos nem dos dias santos de guarda de que se ouvia falar no sermão do púlpito ou na simples homilia em cada missa católica, com a taberna aberta em contravenção às leis ditadas pela religião dominante mas em obediência aos ditames imperiosos das seis bocas a alimentar, que a realidade da travessia terrena urgia mais que a imaginação do além.
O mais velho, o António, fez-se adolescente e conheceu o mundo do trabalho assalariado na Junta de Energia Nuclear; o segundo, o Norberto, seguiu-lhe o exemplo e iniciou-se na mecânica automóvel numa oficina de reparações donde havia de saltar para trás do balcão dum banco, por onde viria a fazer carreira; o mais novo, o Luís, bafejado pela economia familiar já menos esticada, da 4.ª classe passou logo ao Liceu e seguiu por aí fora, sempre em boa maré. Ele, o Armando, o terceiro da ninhada, foi parar à firma Conde & Gião, onde ajudava os clientes na decisão de compra dum ou doutro electrodoméstico ou dum fogão a gás.
No alcance do trabalho remunerado que cada um dos três granjeou esteve a mão da D. Dores, a Cota, como era popularmente conhecida, embora inadequadamente, devido aos dedos defeituosos de nascença ou por acidente, já não sei dizer. A D. Dores, de quem se dizia que mandava mais que o bispo – e não era esta uma sentença assim tão despropositada, note-se! –, não esmolava aos comerciantes ou industriais instalados que dessem um empregozito àquele por quem intercedia; também não ordenaria feita patroa labrega, mas lá faria compreender aos empregadores que era seu dever social atender a pretensão exposta, sempre e só em benefício de quem precisava. E fosse por temerem ver o seu nome citado na praça pública, fosse porque a D. Dores lhes metesse a mão na consciência que ostentavam como cristã em cada domingo assistindo à missa do meio-dia na Igreja da Misericórdia, celebrada pelo Padre Freire, afamado pelas homilias de fazer chorar as pedras, ou fosse simplesmente porque a D. Dores lhes caísse no goto, o certo e sabido era que anuíam e o rapaz intercedido lá tinha onde começar a ganhar o sustento! E foi assim que o Armando começou a fazer pela vida, ao mesmo tempo que, à noite, depois dum jantar apressado, à semelhança dos dois mais velhos, apanhava os livros debaixo do braço e lá ia ouvir as lições na escola nocturna, no Centro, como era chamada, onde, mais uma vez, a D. Dores comandava a organização que permitiu a muitas dezenas de rapazes, antecedendo quantas vezes voos de maior fôlego, obterem o diploma do 2.º ciclo liceal, em muitos casos fazendo os cinco anos lectivos em apenas três, ao mesmo tempo que trabalhavam oito horas por dia para ganhar o pão que houvessem de comer.
Ao tempo, e graças ao relacionamento com o Luís, advindo do companheirismo do Liceu, era frequente a minha presença em casa deles, onde tantas vezes a Ti Aida me sentou à mesa, no reservado, e me colocou na frente um prato de sopa já com a colher a jeito, e, ainda esta não terminada, já uma travessa bem aparelhada com o que houvesse no dia descia sobre a mesa pela sua mão carinhosa. Não obstante ali ser perdido e achado frequentemente, não se desenvolveu o meu relacionamento com os três irmãos mais velhos dado regularmo-nos por relógios de padrões de vida desencontrados, já que eles trabalhavam de dia e estudavam à noite. Desse tempo, a recordação que tenho de convivência com o Armando resume-se a uma ocasião em que, vá lá alguém hoje saber dizer a que propósito (talvez a nenhum…), o Luís, eu e ainda outros, decidimos fazer uma jantarada lá em casa (mas no primeiro andar, não na taberna, que aquilo era coisa fina!) e termos convidado um professor da Escola do Magistério Primário, o Dr. Vasco, com quem simpatizávamos, conhecido por ser um bom copo. Já regados, que o Ti Queirós não deixava o jarro do vinho chegar ao fundo, o Dr. Vasco disse umas palavrinhas à laia de discurso e nós aplaudimos, comentámos, falámos pelos cotovelos, emocionámo-nos e o mais que era susceptível de suceder em tais circunstâncias. Ora aconteceu que o Armando apareceu por lá, talvez depois das aulas a que assistira, e fez súcia connosco, mas, observador atento que era, sem se embrenhar no falatório que nos animava; no dia seguinte, falando-se da jantarada, evidenciando já a queda para o dichote oportuno em que é pródigo, o Armando comentou a nossa emoção chamando à liça a abundância de vinho que o Ti Zé Queirós nos fornecera...
Correu o tempo e cada um rumou a outros azimutes. A convivência próxima com o Armando estava reservada para mais tarde. Regressado eu da Guerra Colonial em 27 de Março de 1969, poucos meses depois, em 19 de Outubro, prematuramente, sem que a natureza madrasta lhe permitisse cumprir o seu ciclo de vida, finava-se a Ti Aida, que fora um pouco minha segunda mãe. Acompanhei os quatro irmãos e o Ti Zé Queirós no funeral, em S. Pedro, e lá almocei com eles e com os padrinhos dos quatro, a Ti Lucília e o Ti Norberto, em casa destes. O falecimento da Ti Aida originou o passo significativo da minha aproximação aos três irmãos mais velhos, que em Lisboa se desenvolveria com o António e o Armando nas tertúlias do há muito desaparecido café Nova York e na Casa do Lumiar, alugada pelo António, que foi um alfobre de cultura, de vivência, de desenvolvimento e sedimentação da personalidade que os moldaria a eles e a quantos por ali tiveram assento nos anos da Universidade. Depois, em 1990, a 23 de Dezembro, foi a vez do Ti Queirós terminar o seu ciclo de vida. Este finamento veio a ser o motivo próximo para um almoço na minha casa, no início de 1991, que foi um modo de homenagear e a Ti Aida e o Ti Zé Queirós. Foi o primeiro almoço do bucho, que se tem vindo a repetir ano após ano, depois alargado a outros convivas. Participante assíduo nesses encontros da Confraria do Bucho, como o grupo veio a consagrar-se, o Armando pontuou sempre pelo bom humor permanente, o chiste no momento apropriado, a observação oportuna, a opinião que se sabe avalizada e por que se espera.
Estão a completar-se setenta anos desde que a Ti Aida o pôs no mundo. Quem quiser saber o ano desse acontecimento recorra à tabuada e faça uma simples diminuição, se souber. Mas facilito a conclusão adiantando que foi depois de 1917, o ano das famosas visões numa carrasqueira, a 13 de Maio. Talvez por ter sido a 13 de Maio – dizem algumas más-línguas! –, tenha escolhido a Fátima para companheira, sem a qual, diga-se em abono da verdade, o Armando não era a mesma coisa…
Veiga
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