"Depois das núpcias, mandava o ritual que se expusessem a público os lençóis para atestar a virgindade da noiva."
Diogo Gomes
Espanta-me, como quase 50 anos depois destes acontecimentos as imagens se me apresentam com estranha clarividência. A única diferença é que nos vejo com o aspecto que então tínhamos. Franzinos, escorreitos, livres, de mente sã, sem a carga emocional que depois adquirimos ao longo da vida. Acho que já estou a divagar.
O Natal, lembras-te do primeiro Natal que lá passámos? A estranheza do calor mais do que a falta da família. Lá engendrámos uma festa com ramos de palmeira em vez de pinheiro, mas lembro-me que havia muitas iguarias que as famílias mandaram, especialmente os pais do Matos, que moravam ali mais perto, em Carmona. Lembro-me até de bolo- rei! E bebida, muita bebida!!! que não conseguia afogar as mágoas nem encurtar as distâncias da separação e dos nossos sonhos. Dos episódios de guerra, patrulhas e quejandos, não estou muito a fim de comentar. Outros camaradas certamente o farão com muito mais propriedade e apetência. Por mim fiquei vacinado.
Um evento social de que participámos em plena mata não posso deixar de referir já que estes apontamentos vão ter honra de prelo. Um evento que não teve honra de convites dourados com ementa escrita no interior. Já adivinhaste que me refiro ao casamento do Alçada. O pedido, se assim se pode chamar, diria mais a negociação, decorreu na aldeia dos pais da noiva, que não teria mais de 14 anos.
Assistimos à preparação da pequena, recolhida com as mais velhas, cara enfarinhada de branco, ouvindo os conselhos e os cânticos adequados à cerimónia. O dote, ou a compra, resumia-se a dois cabritos e dois garrafões de capacete. A história do capacete intrigou-me. Era uma envoltura do gargalo em gesso, na época não havia plástico, que os tornava invioláveis e à prova de mixordeiros que na zona abundavam. Não sei do resto mas penso que envolvia também uma maquia em dinheiro. A boda, com pompa e circunstância, meteu galinha fiote e saca-folha, uma espécie de folhas de palmeira com fuba regado com dem dem e que se comia enrolando nos dedos.
Meu deus como é que me lembro disto tudo com tal detalhe!!! Depois das núpcias, mandava o ritual que se expusessem a público os lençóis para atestar a virgindade da noiva. Caso tal não se verificasse caberia ao pai devolver o dote. Barbaridades de que fomos cúmplices.
Diogo
(continua)
Claro que me lembro do primeiro Natal e do casamento do Alçada. E ainda bem. A recordação destes grandes eventos da nossa juventude é a prova que, apesar dos 70, ainda vamos mantendo alguns neurónios a funcionar.
ResponderEliminarAquele casamento foi uma coisa que só vista.
Qualquer de nós já terá assistido a vários casamentos e o mais provável é que nem nos lembremos da ementa de nenhum deles. Mas o saca-folha, como é que poderíamos esquecer?
Consegui tragá-lo porque o cerimonial assim o impunha, mas confesso que não fiquei adepto de tal petisco. Penso que aquela espécie de esparregado levava também peixe seco.
Tivemos o privilégio de estar presentes, mas nem todos tiveram essa sorte. Alguns estariam, àquela hora, na patrulha e alguém tinha que ficar de guarda ao arame farpado.
Há um pormenor de que, provavelmente, o Diogo não se lembra.
Na fase de namoro, ou mais propriamente da negociação, o pretendente, num gesto cavalheiresco, próprio de um cidadão de um país civilizado que se estendia do Minho a Timor, resolveu presentear a noiva.
Nada melhor do que aquela peça de roupa que é símbolo de feminilidade, um sutiã.
Qual não foi o seu espanto, quando, acabada de vestir aquela sofisticada peça de roupa, viu a rapariga sair a correr por toda a sanzala, mostrando a toda a gente tamanha modernice.
Não se tratou, por certo, de um gesto exibicionista, mas talvez uma forma de demonstrar como tinha assimilado bem a chamada civilização que durante cinco séculos por ali andámos a espalhar.
Afinal, por cá também se faziam exibições desse tipo, com estas ou outras peças de roupa.
Acho que é saudável que hoje recordemos melhor estas cenas do que a defesa da pátria de que nos incumbiram, sem nos perguntar se estávamos interessados.