quarta-feira, 23 de maio de 2012

Histórias de Guerra 1 - De Estremoz a Cabinda

 "70 anos Queirós? É muito tempo, gaita. E desses 70 anos vinte e quatro meses passámo-los quase sempre juntos."
Diogo Gomes



A Patrícia pediu-me que escrevesse alguma coisa relacionada com a nossa estadia em Cabinda, para o livro com que te pretende surpreender no dia dos teus 70 anos. Boa menina. Pelos vistos tivemos a sorte de ter bons filhos. Também eu os tenho! Deu-me como prazo o dia 1 de abril. Prometi-lhe que sim e que até lhe mandaria algumas fotografias, que tenho muitas. Quem tem uma filha disposta a coligir uns escritos e fazer uma publicação pelos 70 anos do pai tem que ser muito boa filha.

 E eu sei, melhor que muitos camaradas com quem lidámos de perto, que tu és muito bom homem, embora um tanto já para o velhote, convenhamos. E teria havido outro remédio, condenados como estávamos a lidar de perto uns com os outros, circunscritos naquele quadrado de arame farpado? Mas 70 anos Queirós? É muito tempo, gaita. E desses 70 anos vinte e quatro meses passámo-los quase sempre juntos. Um lapso de tempo roubado da nossa jovem vida, completamente perdido num fim de mundo, a defender aquilo que nos não pertencia e para que nada contribuímos. Violências que a teimosia de um velho decrépito e o seu séquito de conselheiros e generais senis não souberam ultrapassar.

Acontece que por via deste meu vício do trabalho, que me tem mantido sempre ocupado, mas vivo, a agenda complicou-se. As minha boas intenções de fazer um escrito decente, circunstanciado, bem documentado e dentro do prazo proposto goraram-se. Acabei ontem uma obra para um amigo e hoje estou metido num avião rumo ao Rio de Janeiro para ver outros trabalhos misturados com férias. Aproveito as longas horas da travessia do atlântico para cumprir a promessa e ir escrevendo de memória, já que não me vejo a faltar ao compromisso que assumi com a tua filha Patrícia. Vai-me desancar por não ter anexado as prometidas fotografias. Outro dia o faremos. Aqui fica a promessa.

 Não sou capaz de escrever de carreirinha a nossa saga como se de um diário se tratasse mas alguns episódios me saltam à memória em flashes fugases. Desde a preparação para a partida, em Estremoz, onde nem sequer nos conhecíamos, até ao embarque no comboio que nos levou direitos ao cais de Alcântara como se fossemos para a camara de gás. O desfile, as senhoras do movimento nacional feminino a distribuírem uns míseros maços de cigarros, mesmo para quem não fumava. Solidariedade balofa que bem se dispensava. Os últimos beijos, o adeus dos lenços, as lágrimas, enfim a despedida que para alguns foi definitiva.

Depois o embarque no Vera Cruz que no seu vai vem carregava os pobres coitados para a incerteza. A passagem por S. Tomé, com a ilha do Príncipe à vista, apanhou-nos, já de manhã, a jogar a lerpa no camarote não recordo de quem. Episódios inesquecíveis como o desembarque ao largo de Cabinda, com direito a salto para um batelão a subir e descer de acordo com o capricho das ondas, 3 metros abaixo da escada do portaló. De batelão navegámos a parte final da viagem até ao cais, que nos conduziria a uma terra vermelha, com um cheiro característico que nunca mais nos deixaria em paz. O Vera Cruz não poderia atracar a um cais que nunca fora construído. Os futurólogos não souberam prever a guerra e o transporte massivo de tropas a necessitar de um cais de acostagem mesmo que outras necessidades o exigissem.

Diogo

(continua)


1 comentário:

  1. É mesmo, caro Diogo!
    Um tempo tão antigo, e tão presente, e tão contraditório... parece mentira que tenha havido um tempo assim. E no entanto houve!
    Dá-nos fotos dele, que fazem falta, hás-de ter por aí!

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