segunda-feira, 28 de maio de 2012

O Armando, a Quem eu Chamo Cândido

"... passei uns dias metido em casa dele, ali ao cimo do Monte Abraão. Eu não estava autorizado a vir à rua por uma razão qualquer, mas foi a semana melhor da minha vida."
Isaac


Assim esbelto e escorreito, o Cândido criou-se na casa da varanda. Quando era menino olhava lá de cima os longes da charneca, e aos poucos foi aprendendo a considerar o mundo à distância a que está. A verdade é que o sacana (o mundo, claro) não merece mais.

Eu só mais tarde vim a conhecê-lo. E guardo dele uma imagem, antiga e muito nítida, numa loja de aparatos modernos e luzidios, no rés-do-chão duma pensão burguesa. Mas nunca soube como é que ele aprendeu a manusear aquelas máquinas todas. Às vezes ainda o vejo, de livros na mão, de partida para o Centro, ao princípio da noite.

O Centro era um aljube de pedra, assim visto de fora, onde eu imaginava pontes levadiças e catacumbas sombrias. Mas nesse tempo ainda havia milagres, e o Cândido contava das aulas nocturnas onde se falava de epopeias e poetas. Muitos anos depois, tantos que já nem me lembro, passei uns dias metido em casa dele, ali ao cimo do Monte Abraão. Eu não estava autorizado a vir à rua por uma razão qualquer, mas foi a semana melhor da minha vida. Um dia fui encontrar-me com ele à Rua do Crucifixo.

Nesse dia mostrou-me um cartãozinho dourado que tirou do bolso, e que dava dinheiro a quem o não tivesse. Não sabia ele que me estava a abrir as portas da perdição e da miséria. O Cândido criou-se na casa da varanda, entre quatro galfarros, num tempo em que as mães sabiam fazer milagres. Ele escolheu a melhor parte que havia em cada um deles, reservou-a para si e assim se fez, esbelto e escorreito. É daí que vem a grande falta, sempre que o mundo se junta e ele não comparece.

Isaac

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