sexta-feira, 25 de maio de 2012

Histórias de Guerra 2 - Quem Partiu o Pé?

"...a primeira e única lição de condução que tive na vida foste tu que ma deste no velho jeep Willys."
Diogo Gomes


E como Deus não dorme, o Picciochi, (ou seria outro!?), no salto, partiu um pé. Castigo ou acidente? Depois aquela interminável espera para distribuição das armas e rações de combate. Um grupo de jovens amontoados pelo cais, sentados em cima dos sacos cilíndricos que guardavam os nossos parcos haveres, temerosos duma guerra para a qual não concorremos.

Quem pode ultrapassar estes traumas dos 20 anos? A interminável e infernal viagem pelo escuro da noite, mata adentro, coração num aperto, 10 horas para galgar 100 quilómetros numa picada com buracos onde cabia uma GMC! Só nós, cordeirinhos inocentes prontos para uma matança anunciada.

E a chegada, lembras-te da chegada? Um aquartelamento nos confins do mundo. As comodidades da casa tinham ficado a anos luz de distância. Penetrámos uma caserna de madeira com telhado de zinco. O capim dava pelos joelhos e logo ficámos com umas perfeitas meias de pulgas famintas coladas às nossas pernas. Ninguém se acreditaria! Rendemos uma companhia comandada por um louco. Fazia rebolar granadas pelo chão da messe como bolas de ténis, em jogos de guerra de gente demente. Pobres maçaricos que logo ali levaram um susto de morrer. E a mulher desse capitão, que ali vivia com ele, de revolver à cinta como um pistoleiro de tempos idos? Os filmes de cow boys comparados com aquilo eram meras comédias.

Depois foi a limpeza e reconstrução. Tenho que concordar que ficou um brinco. A tua oficina lá ao fundo. Como é que conseguias manter aquele ferro velho que era a frota de viaturas, sempre a trabalhar? Tempos em que um arame e um alicate faziam milagres. Agora é só tecnologia e ainda bem. Havia que fazer a gerência das pequenas necessidades.

 Quem é que lavava e tratava da roupa? Dentro havia um núcleo de locais que se dedicava a essas tarefas. Contratei o Bartolomeu. Pequeno. Afável, pernas arqueadas e muito solícito. Julgo que foi também o teu governante. Camisas bem lavadas e passadas a ferro. Estava ultrapassado um problema.

Das inúmeras histórias que não ficaram para a história muito haveria que escrever. Será que alguém algum dia o fará, que não esses vendilhões do templo que se servem da guerra para enriquecerem contando patranhas fantasiosas como algumas que tenho lido sem conseguir chegar ao fim? Das coisas boas também reza a história. As comezainas de um veado apanhado distraído, assado no forno do padeiro, na messe, as idas ao Massabi comer uma terrina de camarão por dez paus, onde o Matos nos recebia bem, as conversas até altas horas da noite na companhia de uma grade de Cuca ou Nocal, os jogos de cartas e por aí..

Numa dessas noites encontrámos o capitão Vergas Rocha, perdido de bêbado, deitado na valeta que passava junto aos nossos quartos. Levámo-lo calmamente para o quarto mas já não sou capaz de dizer quem o levou. Um dia, quando fui a Luanda, pediu-me que lhe comprasse o Mein Kampf. Era um livro proibido, ou em vias disso, mas havia uma livraria em Luanda que o tinha. Comprei dois, pra matar a minha curiosidade! Nunca percebi tal encomenda.

 Lembras-te de uma noitada em que nos vestimos todo à civil, com gravata e tudo, e jogámos e bebemos até de manhã sempre com a alegria folgazã do Isidro a marrar com o Gaguinhas? Tenho fotografias dessa noite mas temo já não ir a tempo de as enviar para serem publicadas. Ficarão para o livro dos 80 anos que estou certo a Patrícia organizará e eu só espero cá estar para contribuir. Foram os momentos menos maus das agruras porque passámos.

Acabou-se-me a bateria durante a viagem e cá estou de novo. Entretanto o espaço de tempo deu-me para rememorar outras situações. Este episódio da guerra estava já enterrado bem fundo e não fossem as amizades que ali se cultivaram, num grupo restrito, tu, o Matos, o Galamba, o Neves, o Coelho da Rocha, o Isidro, o Serra Neves, o Mendes e pouco mais, por aqui me teria ficado.

Não te lembras mas no prelúdio da nossa célebre viagem de que trataremos mais adiante, decidi tirar a carta. Imagina que a primeira e única lição de condução que tive na vida foste tu que ma deste no velho jeep Willys. Tu já tinhas carta militar, por inerência de funções, e eu nunca tinha pegado num volante para conduzir um carro, ou uma viatura, como se diz em linguagem militar. Não te lembras e de facto não é caso para te recordares só que para mim passou a fazer parte da história da minha licença de condução. Claro que fiz má figura na mesma, especialmente quando o examinador me mandou fazer inversão de marcha numa subida. Correu mal mas nada que um par de whiskeys pagos ao examinador não tenha resolvido.

Bons tempos!!! Aprendi depois à minha custa e à tua que se deixaram conduzir no carro que alugámos, sem medo… digo eu. A vantagem de ir escrevendo aos poucos, nos intervalos da praia e durante as quentes noites destas paragens, é que o nevoeiro se vai dissipando e vêm à mente as imagens daquele tempo.

Afinal julgo que o tipo que partiu o pé foi o Azeredo. Lembro-me agora de o ver apoiado numa bengala. Não vale a pena alterar o que já escrevi a este respeito, se a Patrícia entender substituir o texto e colocar os personagens no seu lugar é absolutamente livre de o fazer.

Diogo

(continua)


Sem comentários:

Enviar um comentário

Comente este post