sábado, 30 de junho de 2012

Dois Anos Perdidos (1) - A Viagem



"...aí vamos nós em direcção ao nosso quadrado de arame farpado, onde logo começámos a contar quantos dias faltavam para a viagem em sentido inverso."
Armando


O meu amigo Diogo, através da sua participação neste blog que os Administradores acharam por bem dividir em cinco Histórias de Guerra, descreve de forma brilhante e de memória, vários dos episódios do tempo que passámos “…naquele quadrado de arme farpado … num fim de mundo, a defender aquilo que nos não pertencia e para que nada contribuímos”.
 O Diogo optou por não comentar “episódios de guerra, patrulhas e quejandos” tal como os outros amigos da tropa que também participaram neste blog. Estamos todos de acordo. Por alguma razão ficámos amigos. Temos outras passagens, bem menos doentias, para recordar.

O embarque em Alcântara, depois de uma noite num comboio, ainda zonzos pelas farras dos últimos dias, terá ficado, por certo, gravado na memória de todos.
 Tínhamos organizado uma grande jantarada de despedida e acabámos por ir parar ao monte de um latifundiário alentejano, onde o nosso amigo David Coelho da Rocha achou por bem encher os bolsos das diversas variedades de enchidos que secavam numa cozinha. Ganhou chouriços mas perdeu um fato. Provavelmente a troca valeu a pena. Do fato não iria precisar nos dois anos que se seguiram.

Ou pela ressaca ou pelos balanços do Vera Cruz, brevemente começámos a sentir os primeiros enjoos. Quando comecei a sentir forças para sair do camarote e ir até ao convés já não havia terra à vista.

No quinto dia de viagem, algures no Atlântico, fiz 22 anos. Era mesmo novo. Mas ia já a caminho de uma guerra. A festa de aniversário não deve ter passado de uma garrafa extra, dividida com os companheiros de mesa. Nem se comia mal no Vera Cruz e percebemos isso bem, logo após o desembarque.

A paragem ao largo de S. Tomé, para deixar uma companhia, deu para perceber que já estávamos em África. Deu também para distribuir muitos dos maços de tabaco do Movimento Nacional Feminino, atirados para os diversos pequenos barcos que se aproximavam do navio.

A chegada a Cabinda, já bem descrita pelo Diogo, nem é bom lembrar. O salto para um batelão a baloiçar, a afastar-se e a aproximar-se do navio, conforme a ondulação, assustava os mais afoitos.
Penso que nunca fiz nada com semelhante risco. Na recruta ensinavam a saltar de camionetas, mas era em terra firme, aquilo era mais para fuzileiros.
No meio daquilo tudo aparece o “Pássaro Azul” (1º Sargento), homem com uma idade já pouco própria para aqueles saltos e mais batido naquelas andanças, agarrado à corda de um guindaste que descia as bagagens para o batelão. A antiguidade é, de facto, um posto, como eles diziam.

Atingido aquilo a que se chamava o Porto de Cabinda, um vasto campo pejado de troncos do Maiombe à espera de embarque, estávamos, enfim, na guerra.
 Entregue a cada um a arma que havia de o acompanhar durante dois anos e uma caixa de cartão com uma ração para 24 horas, aí vamos nós em direcção ao nosso quadrado de arame farpado, onde logo começámos a contar quantos dias faltavam para a viagem em sentido inverso.

(continua)

1 comentário:

  1. Afinal o desafio de escrever o livro foi aceite! Ficamos à espera de outras histórias.

    ResponderEliminar

Comente este post