"...percorremos as mesmas calçadas, subimos os mesmos eléctricos,
frequentámos as mesmas tascas e aturámos (ou nem por isso…) os mesmos
professores no Instituto Comercial."
António Pina
Então Pá! T’ás bom?!,
É assim a saudação que me recordas. Ou talvez nem fosse bem assim que a formulasses, mas é nela que te revejo: intimo e próximo mas, ao mesmo tempo, aparentando à superfície um vago distanciamento de quem é pouco dado à manifestação plena da afectividade.
Então Pá! T’ás bom?!
Conhecendo-te as raízes, tendo já pisado as ruas de S. Pedro do Rio Seco e partilhando a mesma origem beirã, sei que esse é um disfarce que tu usas. Uma espécie de carapaça que vais tecendo com malhas de ironia, sempre bem-intencionada e quase sempre de elegante e de fina subtileza. Mas conheço-te também porque recebi de ti o amparo de amigo mais velho que, de certa forma adoptou o “puto” que, mal chegado da aldeia, menino e moço de 12 anos acabados de fazer, de repente se vê a tentar adaptar-se ao estudo nocturno na Escola Académica, ali para os lados do Conde Barão. Lembras-te? Não te vou recordar o “nickname” com que na altura o professor de português me rebaptizou e que, tenho uma vaga ideia tu também terás alimentado…Deixo-te este desafio para o teu “brain training”.
Conheço-te porque percorremos as mesmas calçadas, subimos os mesmos eléctricos, frequentámos as mesmas tascas e aturámos (ou nem por isso…) os mesmos professores no Instituto Comercial. Que saudades dos tempos dos bons copianços a filosofia e da fogueira feita no Largo do Camões com os livros de “Organização Corporativa” (já não me lembra se era este o nome da disciplina) depois de termos passado no respectivo exame!
Conheço-te porque bastas vezes me saciaste a sede e preencheste o apetite pelos “pitéus” que fazias em tua casa. Monte Abraão foi uma referência. E não só pelo entusiasmo que foi a vossa (agora passo a introduzir a Fátima) instalação. Não só pelos bons vinhos e boas comidas, pelo esforçado estudo (ai, as matemáticas…), não só pela amizade fraterna mas também pela solidariedade com a luta pela liberdade e pela democracia.
Julgo que nunca te disse o que agora te revelo. Numa das vezes em que pedi o teu apoio logístico, a tua casa no Monte Abraão, foi o local de reunião com uma das pessoas na altura mais procurada pela PIDE: o dirigente comunista Carlos Brito, na altura membro do secretariado do comité central do PCP e responsável máximo pela coordenação da luta estudantil. Felizmente tudo correu bem…e também por aqui tu contribuíste para a liberdade e a democracia.
Nesse tempo eu corria atrás do sonho e da utopia. Tu sempre foste bem mais sensato e realista do que eu. Hoje, à distância já de tantos anos, continuo a assumir a generosidade da nossa entrega e não lamento nada do que nesse tempo fiz, mas já não comungo da utopia e já não sou capaz de sonhar. A realidade transformou-me, porventura para pior…
Conheço-te também porque partilhámos estórias e vivemos episódios mais ou menos anedóticos mas sempre reconfortantes na nostalgia da sua lembrança: lembras-te de termos apanhado uma galinha viva em plena auto-estrada (ou terá sido na EN1?) quando íamos a caminho da Guarda? E lembras-te dos farinheiros que em casa dos meus Pais tiveram que esperar, por respeito à minha Mãe, pela meia-noite de sexta-feira santa para irem para as brasas, podendo assim ser comidos sem ser em pecado?
Mas conheço-te também porque sempre testemunhei a forma carinhosa, protectora e presente com que te relacionas com a Fátima, tua mulher e companheira de sempre, única que eu tenha conhecido. E depois, com a Patrícia, o teu (o vosso) enlevo. Já nos encontramos em Telheiras. Somos quase vizinhos. Eu também já tenho família. A Pilar, a Joana e a Inês são o meu mundo e o meu destino. Somos quase vizinhos e, no entanto, vamo-nos vendo poucas vezes. A vida vai começando a traçar-nos caminhos que nos afastam. Parto para Angola. São seis anos de desterro. E nas vindas cá, certamente nos encontrámos uma ou outra vez, mas sem cimentar o relacionamento. Amigos comuns vão ficando distantes. Lembro-me do Camacho. Há muitos, muitos anos que o não vejo.
Os anos vão passando. À tua estabilidade no Banco, eu ía contrapondo uma vida profissional mais instável. Saltitando de experiência em experiência à medida dos mandatos e das Assembleias Gerais. Vida de cão sempre a correr. Inércia e descuido no restabelecer das relações de amizade. Mas os amigos, os que o são, perduram mesmo que ausentes. E de vez em quando encontram-se. No supermercado das Telheiras:
Então Pá! T’ás bom?!
- O que fazes?
- As compras da semana? E tu como vais? A Fátima tá boa? E a Patrícia?
- Porreiras. Mudámos para Lagos? Reformei-me e a Fátima também. Então e tu?
…….
Passam-se meses, anos. Noticias? Nenhumas.
Mas guardam-se as memórias e os números de telefone.
E que tal uma ida até Lagos? E que tal uma sardinhada com o Armando Queiroz?
Então Pá! T’ás bom?!
Também te conheço porque te vi embevecido com o teu neto. Avô babado que nem eu. Coração grande, que destila amizade, ternura e amor pelos poros da malha que vai tecendo para o tentar esconder.
Então Pá! T’ás bom?!
Recebe um grande e forte abraço deste teu amigo, pouco presente mas verdadeiramente amigo pela ternura com que te lembro.
Pina
Eu e o Camacho já fazíamos a barba há uns anos. Este “puto” ainda sem barba, resolveu atrelar-se a nós e não o rejeitámos.
ResponderEliminarAinda sofreu umas coisas connosco. Saímos das aulas às 11h da noite e íamos a seguir estudar para um café. Sabíamos a hora de encerramento de uma série de cafés. A maior parte das vezes íamos para o Palladium, nos Restauradores, que fechava às 2h.
O Pina às vezes dizia que estava cansado, não lhe apetecia, mas nós é que mandávamos ia e ia mesmo.
Claro que nem sempre estávamos a estudar. Uma vez, já fartos dos tascos baratos da Baixa, devíamos ter uns trocos e resolvemos ir jantar à Churrasqueira do Campo Grande.
Correu tudo bem, viemos embora e quando chegámos ao Campo Grande o Camacho disse que se tinha distraído e trouxe do restaurante uma garrafa no bolso da gabardine.
Sentados num daqueles bancos, fomos esgotá-la e o Pina, menos habituado a estas coisas, apanhou a sua primeira bebedeira.
O nosso castigo, foi ter que ir levá-lo ao quarto que tinha alugado na Rua Caetano Palha, ali para S. Bento e metê-lo na cama.
Na mesma casa, morava também uma moça de perto da terra do Pina, com uma cara ainda mais ingénua do que a dele e que nós resolvemos que era sua namorada. Tanto ele como ela iam aos arames cada vez que dizíamos que namoravam.
Estou convencido de que nunca namoraram, mas ainda hoje se me referir a ela no círculo restrito de amigos, já ninguém se lembra do seu nome, mas se disser a namorada do Pina, toda a gente sabe de quem se trata.
Entretanto, os anos foram passando, nasceu-lhe a barba e começou a interessar-se por coisas mais sérias e, passados uns tempos, já era ele que se esforçava para me mobilizar para lutas em que tinha que jogar a vontade de participar com o medo das consequências. Parece-me que o medo, apesar de muito, muito grande, poucas vezes venceu.
Hoje, se tivermos uma discussão será, por certo, subordinada ao tema: Quem tem o neto mais bonito e mais esperto