segunda-feira, 23 de julho de 2012

Dois anos perdidos (5)

O Regresso


"....um coro sem qualquer ensaio mas de uma forma uníssona gritou bem alto: “Viva a Peluda” Estávamos, enfim, na Peluda"


Maio de 66, a contagem chegou ao fim. Dois anos já tinham passado, mas tivemos de aguentar mais dois meses até os maçaricos chegarem para nos substituir.
O Diogo escreveu “Não me lembro como é que viajámos de Cabinda para Luanda”.
Até me custa a acreditar que o Diogo, com excelente memória para outros detalhes, possa ter esquecido uma viagem destas. Só o entusiasmo do regresso poderá explicar este apagão de memória.
Já mesmo ao fim da tarde, entrámos num barco completamente carregado de troncos de madeira do Maiombe. Não estávamos prevenidos para o frio que iríamos passar e vestimos apenas o fato camuflado. Para o jantar, foram distribuídas as já bem conhecidas e detestadas rações de combate. Foi uma daquelas noites para esquecer que, pelos vistos, o Diogo levou à letra e esqueceu-se mesmo. Também preferia não recordar, os enjoos, o desconforto, o frio e a fome que passei naquela viagem.
Quando chegámos a Luanda já o sol ia alto. Até que enfim.

Até ao dia do embarque ficámos por ali naquelas pensões, criadas para os tropas, que só nos alugavam quartos em regime de pensão completa. Eles sabiam que não comeríamos lá nenhuma refeição, mas também não estávamos para discutir.
Um dos nossos amigos chegou um dia ao quarto e encontrou o porteiro a dormir na cama dele.
Bem podia ter avisado o homem que, naquele dia, chegaria um pouco mais cedo.

Nos nove dias de viagem de regresso, com civis, provavelmente futuros retornados, não se sentia a euforia daqueles já longínquos dias de quando fomos para lá. Ou pela ansiedade da chegada, ou porque os últimos dois anos nos deixaram algumas marcas, estávamos mais serenos, já não parecíamos aqueles putos de vinte anos que na ida disfarçavam, pela algazarra, a inconsciência do que os esperava.

À entrada no Tejo, avistámos logo a nova ponte, prestes a ser inaugurada, ainda com as cores vivas da recente pintura, mas o mais emocionante foi a aproximação do barco ao cais, onde uma multidão nos esperava. À medida que a distância se encurtava iam-se distinguindo familiares ou amigos.

Antes de um novo embarque para o Barreiro, onde um comboio nos esperava para nos levar até Estremoz, deu ainda para almoçar num dos muitos restaurantes da Rua dos Correeiros e para ligar para o 395 da Guarda. “Já cá estou” terei, provavelmente, dito.
Corria o mês de Julho e o calor apertava na travessia do Alentejo. Algumas vezes o comboio parou para o pessoal matar a sede.

Da estação de Estremoz marchámos até ao Quartel, o nosso último acto militar. Depois do discurso do Comandante de que não me lembro, mas será fácil de adivinhar, mandaram destroçar e eis que um coro sem qualquer ensaio mas de uma forma uníssona gritou bem alto: “Viva a Peluda
Estávamos, enfim, na Peluda.
Missão cumprida e bem comprida.
E lá fomos, cada um para seu lado, na esperança de recuperar rapidamente os dois anos que tínhamos perdido.

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