sexta-feira, 13 de julho de 2012

Dois anos perdidos (3) - Dinge

"Não nos portávamos muito mal, mas se o RDM fosse interpretado com rigor estaríamos lixados"

Com a troca, de Massabi pelo Dinge, ficámos a ganhar.
Foi aqui que tive oportunidade de conhecer melhor alguns dos que depois ficaram amigos, como é caso do Diogo e do Isidro.

Ocupávamos as instalações de uma antiga serração, onde já havia um gerador e água para tomar banho, embora com horas marcadas.
Por vezes aproveitávamos uma daquelas grandes chuvadas tropicais e o banho era mesmo ali no meio da rua. Era um sítio isolado, sem população civil, mas para o Tenente Esteves – Capelão – era uma grande perversidade estarmos a expor publicamente a nossa nudez.

Os dias sucediam-se, sem distinção entre dias úteis e fins-de-semana, salvo para os que aos domingos não perdiam a missa, numa capela que entretanto se construiu.
Todas as terças-feiras, esperávamos fielmente, às vezes até às tantas, pela coluna de abastecimento, na expectativa de receber uma carta ou mesmo um “bate estradas”.
De “lerpar” ninguém gostava, mas às vezes lá tinha de ser.

De vez em quando recebíamos uns filmes ou uns conjuntos musicais, para animar a malta. Lembro um desses conjuntos, apresentado por um velho que fazia uma grande prelecção sobre o nosso contributo para a defesa da pátria e terminava com uma profecia: “o Estádio da Índia brevemente voltará a ser português” .
Pelos vistos, enganou-se.

Não nos portávamos muito mal, mas se o RDM fosse interpretado com rigor estaríamos lixados.
Até chegámos a fazer uma greve. Já não sei porquê, tivemos um desentendimento com os sargentos chicos e, então, resolvemos não entrar na messe enquanto eles lá estivessem.
Nós que éramos sempre os primeiros a chegar para o almoço, durante esses dias só entrávamos depois deles saírem.
Foi necessária a intervenção do segundo comandante, a quem nós, cruelmente, chamávamos o Dezoito, devido a uma deficiência física em dois dedos.

A aproximação do mês de férias criava sempre uma certa ansiedade, particularmente para aqueles que vinham ao Puto. Cada um ia imaginando e verbalizando as coisas que faria ou que gostaria de fazer, durante esse mês.
Eram festarolas, ver filmes ou espectáculos, farras com os amigos e havia também outras preferências, como aquele nosso amigo com a alcunha de uma grande empresa de produtos lácteos para bebés que passava a vida a dizer: “Quando chegar a Lisboa vou direitinho ao João do Grão comer uma bruta posta de pescada com batatas e grelos”
Será que terá ido mesmo? É pessoa para isso.

Entretanto, muitos anos passaram e os nomes e até as próprias fisionomias foram ficando esquecidos, mas há personagens que, por razões diversas, ficaram na memória de muitos.
O “Brasileiro”, muito mais velho do que nós, emigrante no Brasil, resolveu um dia vir ver a família a Portugal. Como não tinha cumprido a tropa, lixou-se e lá foi parar à guerra.
O “Morte Lenta” que nem com os gritos do capitão acelerava o passo enquanto ia remoendo “a morte é lenta, só morre quem quer
O “Orelhas” encarregado de tratar dos porcos, foi queixar-se ao primeiro-sargento porque estavam a dar comida a mais aos soldados e sobejava pouco para os seus porcos.
O “Tarzan” de corpo muito franzino e que, por isso, os colegas alcunharam sarcasticamente de Tarzan.
E havia aqueles que eram apenas conhecidos pelas alcunhas, muitas vezes ligadass à suas origens: o Açoriano, o Lisboa, o Porto, o Braga, o Vila Real, o Setúbal, o Salvaterra.....
Quem não se lembra do Salvaterra, cabo Chico que arranjava carros no intervalo entre duas cucas?
 (Continua com: Uma Pausa na Guerra)

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