terça-feira, 17 de julho de 2012

Dois anos perdidos (4)

Uma Pausa na Guerra





".....tivemos de assinar um papel, declarando que assumíamos o risco, caso aquela geringonça caísse"

Há mais de um ano naquela vida e já a ficar meio cacimbados, um mês de férias estava mesmo a calhar.
Muitos vinham até cá, a viagem custava à volta de 10 contos, uma agência da CUF, (a CUF estava em todo lado) vendia a prestações e depois o primeiro-sargento descontava nos ordenados. Outra PPP.
Juntei-me com o Diogo e o Coelho Matias e pensámos ficar por lá e ir até ao sul. Até que chegou o dia e lá nos metemos na coluna que vinha a Cabinda para apanhar um avião para Luanda.

Arranjámos boleia na Força Aérea, num daqueles aviões com uma barriga enorme. Como não íamos em serviço tivemos de assinar um papel, declarando que assumíamos o risco, caso aquela geringonça caísse.
Sobrevoámos a foz do Zaire, impressionados pela forma como aquele caudal altera a cor do mar muito para alem da foz e, mais um bocadinho já estávamos em Luanda. A declaração já se podia rasgar, tínhamos chegado sãos e salvos.

Cheios de pressa para nos ver livres da farda, procurámos uma das muitas pensões que por ali proliferavam à custa dos tropas que vinham até Luanda e,  num ápice, estávamos a tirar um bilhete para o Restauração, sem querer saber qual o filme que iríamos ver.
A mudança, de militar a civil, foi tão rápida que a mente não acompanhou. Nos intervalos, ainda tínhamos a sensação que todos os outros espectadores olhavam para nós.
Na manhã seguinte procurámos a Havaneza do Cruzeiro, uma tabacaria na Rua Paiva Couceiro que também alugava automóveis e saímos de lá, já montados no Anglia Fascinante que foi “nosso” durante um mês.

O itinerário já estava programado, arrancámos para Malange que, no mapa, parece logo ali mas foi um dia inteiro de viagem. Começámos a conhecer uma Angola sem guerra.
A visita às Quedas do Duque de Bragança foi um inesquecível deslumbramento. Outras cataratas, mais famosas, que posteriormente visitei não me causaram semelhante sensação. Claro que já não tinha 23 anos e, em vez de apenas três jovens visitantes, estava rodeado por milhares de turistas.
Já a caminho do sul, partiu-se uma correia da ventoinha do Anglia. Calhou-me a mim ir de boleia até ao Dondo, comprar uma nova.
Encontrei todo o comércio fechado e a rua cheia de camionetas repletas de negros que gritavam: “Angola é Nossa”, “Angola é Nossa” , “Angola é Nossa”.
E não é que estavam certos, que era mesmo deles? Só que haveriam de passar mais 10 anos para que o mundo lhes desse razão.
Alguém me ajudou a encontrar o dono da loja de peças e lá regressei com a correia nova. Nessa noite ficámos numa pensão, na estrada, onde pernoitavam habitualmente muitos camionistas. Na manhã seguinte, sentados à mesa para o “mata-bicho”, talvez na expectativa de uma chávena de café com leite, ficámos estupefactos quando a empregada nos perguntou: "bacalhau ou bife?" Não será difícil adivinhar o que é que os três “putos” escolheram.
Não houve mais avarias na viagem e os quilómetros percorridos foram muitos.

O nosso objectivo era chegar a Moçâmedes, depois de visitar Nova Lisboa e Sá da Bandeira. Como a estrada ainda continuava para sul fomos até ao fim e chegámos, através do deserto, até Porto Alexandre. Se mais estrada houvesse…
Invertemos a marcha e começámos a subir ao longo da costa, passando por Benguela, Lobito, Novo Redondo, Porto Amboim.
Em Novo Redondo ficámos num hotel e perguntámos ao dono se conhecia um rapaz da nossa idade, natural dali, chamado Campos. E a resposta foi: “É meu filho
O Campos (o furriel dos cães) tinha-nos dito que em Novo Redondo havíamos de encontrar o pai, mas não nos disse como.

Chegados a Luanda, restavam-nos alguns dias,que aproveitámos o melhor que pudemos. O orçamento estava quase esgotado e nós, na altura, não sabíamos o que era um défice. Mesmo assim ainda deu para umas farras, sem esquecer que tínhamos de marcar o ponto no Bacalhau à Vilela, uma espécie de santuário gastronómico.

Durante esses dias tivemos conhecimento que lá pela nossa guerra as coisas não tinham corrido bem e o Almeida e o Isidro estavam no hospital em Luanda.
È evidente que o hospital passou a fazer parte do nosso roteiro de visitas.
O pior já tinha passado, já dava para galhofar com os visitados, mas o Almeida foi recambiado para Lisboa. A guerra para ele tinha acabado, mas não se esqueceu de nós e no fim lá estava em Alcântara à nossa espera. Os militares diziam “foi evacuado”, mas como o verbo evacuar tem outras conotações prefiro dizer: “foi recambiado”.

Como os dias de férias passam sempre depressa, o dia de volta à guerra chegou e lá tivemos de fazer o caminho inverso e recomeçar a contar os dias que faltavam para tirar a farda de vez. 

(Continua com: O Regresso)

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